As laranjas sanguíneas são caracterizadas pela coloração vermelha-intensa (violácea) da polpa e do suco, devido a presença do pigmento antocianina, solúvel em água. As antocianinas são pigmentos pertencentes a família dos flavonóides e possuem uma série de funções na natureza, tais como a proteção de plantas contra o ataque de patógenos, proteção contra os danos causados pela radiação UV e a pigmentação de flores, frutos e sementes, com as finalidades de atração de insetos polinizadores e de dispersão de sementes.
Estes compostos têm grande importância na dieta humana, pois participam na constituição de cores e sabores dos alimentos e podem ser consideradas também como agentes terapêuticos. Antocianinas possuem ainda a capacidade de proteção contra o estresse oxidativo, doenças do coração, certos tipos de câncer e outras doenças relacionadas, devido a sua capacidade de inativação de radicais livres.
A presença da coloração violácea e a sua intensidade na polpa das laranjas sanguíneas são dependentes de vários fatores, mas principalmente do clima da região em que são cultivadas. Regiões de clima ameno e/ou que apresentam maior amplitude térmica diária (dias quentes e noites frias) são as que favorecem a formação de frutos com maior teores de antocianina, resultando numa coloração mais intensa.
Todas as laranjas sanguíneas contêm antocianinas mas a sua concentração depende de vários condicionalismos. Algumas variedades de laranjas sanguíneas apresentam uma coloração mais intensa que outras e, logo, uma maior concentração de antocianinas. Na mesma variedade, o teor de antocianinas é superior nos climas mais frios. Estudos recentes demonstram que a presença de antocianinas pode aumentar, mesmo depois de o fruto ter sido colhido, se for conservado no frigorífico durante algumas semanas.
Isto pode ser comprovado pelo fato de várias variedades sanguíneas apresentarem frutos com forte coloração violácea quando cultivadas nas regiões de clima mediterrâneo e apresentarem frutos com coloração vermelha clara, quando cultivadas em regiões mais quentes, como no município de Cordeirópolis (SP, Brasil), por exemplo.
Como exemplos de variedades mais conhecidas e utilizadas de laranjas sanguíneas podem ser citadas a: Tarroco, Moro, Sanguigno doppio, Sanguinella e Sanguinelo, dentre outras (Figura 2), que são mais cultivadas nas regiões do mediterrâneo e na Índia, por apresentarem maior aceitação comercial. O Banco Ativo de Germoplasma (BAG Citros) do Centro de Citricultura Sylvio Moreira apresenta 17 variedades pertencentes a este grupo com origem de diversos países.
A cadeia citrícola pode ser considerada um dos segmentos mais globalizados do agronegócio brasileiro. Com grande parte de sua produção voltada ao mercado externo, esse setor exporta anualmente aproximadamente 1,1 milhão de toneladas de suco de laranja [somatório do suco de laranja concentrado congelado (FCOJ) e do suco de laranja NFC (Not from concentrated), exportado em 2016 - relatório do CitrusBr (2017), disponível em http://www. citrusbr.com/download/Relatorio_AGOSTO_2017_ano_civil.pdf)], o que resulta na entrada anual de aproximadamente 1,8 bilhão de dólares.
Dessa forma, os produtos citrícolas (suco e subprodutos) constituem um dos principais produtos da pauta das exportações agrícolas do país.
A agroindústria brasileira detém a liderança mundial na produção de laranjas (frutas) e dos sucos FCOJ e NFC: representa mais de 50% da produção mundial de suco de laranja e exporta 98% do que produz. O suco de laranja é a bebida à base de frutas mais consumida no mundo, com 35% de participação.
Por meio de uma análise da produção de laranjas no país, verifica-se que o cinturão citrícola (Estado de São Paulo e triângulo mineiro) é a maior região produtora de laranjas, com aproximadamente 80% da produção.
Um dos principais problemas da cadeia comercial da laranja brasileira é o baixo consumo no mercado interno de frutos e de sucos, pois, anualmente, apenas 30% do total de frutos produzidos são comercializados no país, geralmente na forma de frutas frescas.
Nesse sentido, a citricultura brasileira, que já tem apresentado nos últimos anos notável desenvolvimento do setor de frutas para processamento industrial (suco), deveria também adotar novas tecnologias de condução dos pomares, com o uso de mudas de melhor qualidade e novos materiais genéticos específicos para a comercialização como frutas de mesa ou para produção de suco NFC, preferido pelo consumidor brasileiro.
Os citros são plantas perenes, de ciclo vegetativo longo, isto é, levam muitos anos para iniciarem a produção, o que torna o melhoramento genético para essas espécies um processo longo e trabalhoso. Entretanto, observa-se uma grande vulnerabilidade genética da cultura devido às poucas variedades que constituem os plantios comerciais, o que tem se tornado uma preocupação constante para o melhoramento dos citros.
O sistema de cultivo basicamente monoclonal (com um ou poucos clones), de variedades com base genética estreita (baixa variabilidade) e em grandes extensões de terra, vem fazendo com que novas doenças ou pragas apareçam, o que resulta em elevados custos de produção.
Diante desse quadro, há grande interesse na seleção e lançamento de novas variedades cítricas, incluindo-se as laranjas que tenham aptidão para a comercialização visando ao consumo como fruta de mesa e/ou para a produção de suco NFC, o que resultaria também numa maior diversificação varietal para a citricultura brasileira.
Variedades de laranja pigmentadas
Algumas laranjeiras doces apresentam frutos com coloração de polpa e suco diferentes dos observados em frutos de variedades tradicionais, sendo denominadas como laranjeiras pigmentadas. Esse grupo inclui as laranjeiras de polpa vermelha e as laranjeiras sanguíneas.
As primeiras produzem frutos com polpa com coloração vermelha devido ao maior acúmulo de carotenoides totais, betacaroteno e, principalmente, licopeno (Figura 1). Já as laranjeiras sanguíneas produzem frutos com polpa e suco contendo coloração vermelho-intenso devido ao acúmulo de antocianinas (Figura 2).
Figura 1. Fruto de laranja da variedade Sanguínea-de-mombuca, do grupo das laranjeiras de polpa vermelha, que apresentam coloração vermelha na polpa devido principalmente ao acúmulo de licopeno.
Figura 2. Fruto de laranja da variedade Moro, do grupo das laranjeiras sanguíneas, que apresentam coloração vermelho-intenso (violácea) na polpa devido ao acúmulo de antocianinas. Fruto cultivado na região da Sicília (Itália).
As laranjeiras sanguíneas são originárias da região Mediterrânea, provavelmente de Malta ou da região da Sicília (Itália), e têm sido cultivadas há vários séculos naquela região, mas principalmente na Itália, Espanha, Marrocos, Argélia e Tunísia.
As variedades de laranjeiras sanguíneas mais cultivadas na Itália são as dos grupos varietais: Moro, Tarocco e Sanguinello, com aproximadamente 70% da produção total. As diversas variedades comerciais de Tarocco possuem aptidão principalmente para a produção de frutos de mesa devido às suas excelentes qualidades de fruta e por apresentarem frutos com menor acúmulo de antocianinas, enquanto as variedades Moro e Sanguinello geralmente possuem os frutos destinados ao processamento de suco (frutos com maior acúmulo de antocianinas na polpa).
O acúmulo de antocianinas nos frutos de laranjeiras sanguíneas é influenciado positivamente pelo cultivo de plantas em locais com temperaturas amenas (outono e inverno frio) ou com alta amplitude térmica diária (outono e inverno).
Isso pode ser comprovado pelo fato de várias variedades sanguíneas apresentarem frutos com forte coloração violácea quando cultivadas nas regiões de clima mediterrâneo (sul da Europa e norte da África), e apresentarem frutos com coloração amarelo-claro quando cultivadas em regiões com clima mais quente, como no município de Cordeirópolis, SP (Figura 3).
Uma característica importante é a possibilidade de se incrementar a concentração de antocianinas nos frutos de laranjas sanguíneas por meio da conservação pós-colheita dos frutos em câmara fria, sob baixa temperatura (entre 4 e 10oC), durante um período de tempo que pode variar entre 30 e 90 dias.
Figura 3. Fruto de laranja da variedade Moro, do grupo das laranjeiras sanguíneas, com pequeno acúmulo de antocianinas quando cultivadas em Cordeirópolis, SP.
Como não há relatos disponíveis a respeito da avaliação do potencial produtivo e da caracterização agronômica de variedades de laranjas sanguíneas no Brasil, é importante avaliar suas performances agronômicas e de qualidade de frutos em diferentes regiões citrícolas do Estado de São Paulo e com plantio sobre diferentes portaenxertos.
Assim será possível selecionar as melhores variedades, os portaenxertos mais produtivos e que induzem a produção de frutos com melhores qualidades, além dos efeitos do clima na performance agronômica e nas características físicas e químicas de frutos e sucos.
Concomitantemente aos experimentos de avaliação agronômica, é necessário desenvolver um pacote tecnológico para cultivo e processamento de laranjas sanguíneas a fim de:
a) determinar as variedades mais produtivas e que acumulam os maiores teores de antocianinas na polpa e no suco;
b) determinar os locais de cultivo que apresentam clima mais adequado para maximizar o acúmulo de antocianinas em frutos de laranjas sanguíneas;
c) identificar os efeitos dos estádios de maturação de frutos no acúmulo de antocianinas;
d) determinar os efeitos da temperatura e tempo de armazenamento de frutos em baixas temperaturas na qualidade e no acúmulo de antocianinas no suco de frutos de variedades sanguíneas;
e) determinar o efeito do processamento do suco (pasteurização e/ou concentração) na manutenção do conteúdo de antocianinas presentes no suco dos frutos.
Informações técnicas sobre laranjas sanguíneas e seu cultivo no brasil
Os estudos envolvendo laranjas sanguíneas foram iniciados no ano de 2005, no Centro APTA Citros “Sylvio Moreira”/ IAC, com a avaliação preliminar de todas as laranjeiras sanguíneas pertencentes ao BAG-Citros (Banco de Germoplasma de Citros) dessa instituição. Nessa avaliação, concluiu-se que havia 18 variedades que podem ser consideradas como laranjas sanguíneas, originadas de diversos países, tais como Itália, Marrocos, Córsega, Espanha e também do Brasil (Tabela 1). Todas elas foram originadas de introduções antigas, realizadas no BAG-Citros, para as quais há poucas informações relevantes.
As avaliações realizadas em frutos colhidos de plantas dessas 18 variedades, mantidas no BAG-Citros, nos anos de 2007 e 2008, demonstraram que, apesar de serem consideradas como laranjeiras sanguíneas, todas essas variedades produziam frutos com coloração amarelo-alaranjado quando as plantas eram cultivadas em região com clima ameno (como Cordeirópolis, SP, por exemplo).
Tabela 1. Nome e número do acesso das laranjeiras sanguíneas presentes no BAG-Citros do Centro APTA Citros “Sylvio Moreira”/IAC.
CN – clone novo, CV – clone velho.
O acúmulo máximo obtido foi de 9,4 mg.L-1 de antocianinas no suco quando os frutos foram colhidos do campo e o suco extraído no mesmo dia. Algumas variedades não conseguiam acumular antocianinas nos frutos nessas condições de cultivo (Figura 4).
No entanto, quando os frutos foram colhidos de plantas desse mesmo pomar e foram posteriormente submetidos à conservação pós-colheita no frio (10 oC, durante até 60 dias), todas as variedades apresentaram frutos contendo antocianinas no suco, mas com concentrações distintas (Figura 5).
As variedades do grupo da Moro foram as que apresentaram frutos com colorações mais intensas aos 60 dias de conservação no frio, com concentrações de antocianinas entre 100 e 230 mg.L-1 no suco. As variedades do grupo da Sanguinelli vieram em seguida, com concentrações entre 70 e 110 mg.L1 de antocianinas no suco, seguidas das demais variedades (entre 1,5 e 70 mg.L-1 de antocianinas no suco).
Figura 4. Frutos e sucos de frutos de laranjas sanguíneas colhidas do campo e sem conservação no frio.
Figura 5. Frutos e sucos de frutos de laranjas sanguíneas colhidas do campo e seguidas de conservação durante 60 dias a 10 oC.
A maioria das laranjeiras sanguíneas produziu frutos com tamanho médio (massa entre 120 e 170 g e tamanho médio dos frutos entre 7,0 x 6,5 cm - alt. x larg.), frutos maduros contendo teores de sólidos solúveis entre 9,2 e 11,9 obrix, acidez titulável entre 1,1 e 2,1, o que resultava em ratios do suco entre 7,0 e 11,0. As porcentagens médias de suco encontradas nos frutos dessas variedades variaram entre 47,5 e 56,2%.
Para sumarizar, esses estudos preliminares demonstraram que os frutos das laranjeiras sanguíneas avaliadas apresentavam qualidades adequadas ao processamento de suco, à exceção da acidez titulável do suco dos frutos, que demonstrava ser mais elevada que a das variedades tradicionais (com polpa amarela) cultivadas e processadas no Brasil, mesmo quando os frutos atingiam o estádio máximo de maturação (para comparar: nas laranjas de polpa amarela, a acidez titulável do suco era menor do que 1,0 quando os frutos estavam maduros).
De modo geral, as laranjeiras sanguíneas apresentavam frutos com maturação precoce ou de meia-estação, com o estádio máximo de maturação sendo atingido anualmente nos meses de junho, julho ou agosto nas condições de cultivo de Cordeirópolis, SP. Coincidentemente, essa época geralmente apresenta os meses com as temperaturas diárias mais baixas de cada ano (final da estação de outono e início da estação do inverno).
Sendo assim, os frutos dessas variedades, cultivados tanto no hemisfério norte como no sul do planeta, permanecem nas plantas e completam o seu período de maturação nos meses mais frios, o que possibilita o maior acúmulo natural de antocianinas nas polpas dos frutos.
Nos países de clima mediterrâneo, as baixas temperaturas diárias nas estações de outono e inverno possibilitam a produção natural de frutos contendo até 250-320 mg.L-1 de antocianinas no suco (exemplo: região da Sicília, Itália), sem a necessidade de conservação pós-colheita no frio.
Um desafio tecnológico para o Brasil para a produção de laranjas sanguíneas é encontrar alguma região propícia ao cultivo dos citros que apresente as estações do outono e inverno com clima semelhante ao observado nas regiões Mediterrâneas.
Em busca de superar esse desafio, a partir de 2008 foram instalados dois experimentos de campo visando à avaliação de diversas laranjeiras sanguíneas em regiões com características edafoclimáticas distintas dentro do Estado de SP. Os portaenxertos utilizados nesses experimentos foram o citrumelo Swingle, tangerina Sunki e limão Cravo.
Os resultados parciais possibilitaram o avanço do conhecimento nas seguintes questões:
a) até o presente momento, somente a variedade Tarocco apresentou incompatibilidade gráfica severa com o portaenxerto citrumelo Swingle, e com indução de mortalidade de plantas após o terceiro ano de cultivo;
b) as produtividades médias das plantas dessas variedades eram adequadas em comparação com as da laranjeira Valência, importante variedade cultivada no Brasil.
No entanto, as laranjeiras Sanguinelli apresentavam plantas com grande produtividade já nos primeiros anos dos experimentos, enquanto as variedades Moro apresentavam plantas com maior crescimento vegetativo nos primeiros anos de cultivo e demoravam um pouco mais para iniciar a produção intensa de frutos nas plantas (Figura 6);
c) as variedades do grupo da Moro foram as que apresentaram frutos com coloração mais intensa aos 60 dias de conservação no frio devido às maiores concentrações de antocianinas acumuladas, seguidas das variedades do grupo da Sanguinelli e, por último, a Tarocco;
d) os experimentos mantidos em regiões com clima mais quente resultaram na produção de frutos e sucos de frutos com melhor qualidade (menor acidez titulável do suco e maior ratio do suco), porém os frutos colhidos desses locais mais quentes tiveram tendência a acumular menores teores de antocianinas nas polpas quando foram conservados na pós-colheita em câmara fria, durante 60 dias, a 10 oC.
Figura 6. Planta da variedade Moro Palazelli (CN 44) com idade de 3 anos.
Algumas dúvidas ainda persistem e deverão ser sanadas nos próximos anos de experimentação. A influência do estádio de maturação dos frutos (não completamente maduro ou maduro, por exemplo), no conteúdo de antocianinas produzidas posteriormente, durante conservação na pós-colheita em câmara fria, ainda não foi completamente elucidada.
Também não se pode ainda concluir sobre os efeitos do processamento do suco (pasteurização e/ ou concentração) na manutenção do conteúdo de antocianinas. As influências das variedades de portaenxerto ainda não foram observadas.
Estudos recentes revelaram que a conservação pós-colheita dos frutos pode ser afetada pela temperatura de armazenamento, com melhores resultados durante a armazenagem à temperatura de 9 oC, que resultou em frutos com coloração púrpura mais escura e maiores teores de antocianinas na polpa, em vez de 4 oC.
Em resumo, os experimentos de avaliações de variedades de laranja sanguínea serão mantidos durante o maior número de anos possível, em busca de respostas para as questões mais importantes e mais intrigantes. Espera-se que, com esses avanços científicos e tecnológicos, num futuro breve, possa-se observar o cultivo e o processamento industrial de laranjas sanguíneas em larga escala no Estado de São Paulo e no Brasil.
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